Descrição:
Os Brasis, que integram o Brasil, são esquecidos ou invisibilizados de forma variada no tempo e no espaço em função dos arranjos e forças sociais em disputa. Nas ditaduras, vozes, lutas, ações contra-hegemônicas desses Brasis tendem a ser ainda mais silenciadas, desconstruídas, atacadas. Tal processo de violência ocorre de forma redobrada e sistemática nas áreas chamadas de periféricas, como na Baixada Fluminense, em que convivem muitos desses Brasis esquecidos no plano dos direitos sociais, ainda que consagrados constitucionalmente. Em geral, tais direitos são lembrados apenas quando se trata de atender aos interesses das elites econômicas e políticas.
Assim, situado no campo de pesquisas sobre políticas e história da educação da Baixada Fluminense, o projeto em tela pretende perquirir as iniciativas em prol da educação realizadas por sujeitos individuais /coletivos da sociedade política ou da sociedade civil, tendo como marco temporal inicial o período da ditadura civil-militar. A partir do território de Duque de Caxias, integrante da Baixada Fluminense, como posição de análise, serão investigadas as políticas educacionais em três distintos cenários: (1) período ditatorial focando, em especial, os limites impostos ao município enquadrado como Área de Segurança Nacional; (2) contexto da chamada redemocratização com ênfase nos dilemas e embates no campo educacional que antecederam e permearam o processo da Constituinte; (3) contexto em que bandeiras educacionais foram metamorfoseadas pelo neoliberalismo e neoconservadorismo.
Pela ótica da sociedade civil, será examinada a atuação de movimentos sociais (especialmente o MUB- Federação Municipal das Associações de Bairros de Duque de Caxias ) e sindicais (Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação -núcleo Duque de Caxias/ SEPE-DC) que promoveram ações pela defesa da educação enquanto direito, como campanhas de alfabetização de adultos e manifestações pela criação de escolas e aumento de vagas. Assim, a pesquisa documental incidirá não só sobre marcos regulatórios, mas, também, acerca da ação dos movimentos sociais, com o intuito de dialogar com agentes, individuais e coletivos, que promoveram (e promovem) a educação local.
A Baixada Fluminense, integrante da região metropolitana do Rio de Janeiro, é composta por municípios que apresentam grande diversidade política e social, porém, ao mesmo tempo, há semelhanças, por exemplo, no processo de formação de lideranças políticas. Salta aos olhos a forte presença do clientelismo, ontem e hoje, enquanto lastro das relações sociais, sendo, portanto, uma chave básica para se compreender os moldes que conformam as articulações políticas, tanto nas distintas facetas que se encontram em disputa no plano local, quanto nas relações instituídas com as esferas estadual e federal.
Cantalejo (2008), ao analisar a trajetória política em Duque de Caxias no período da ditadura civil-militar, indica mudanças suscitadas a partir do cenário em que o município fora convertido em área de segurança nacional, mas também capta permanências, pois as práticas clientelistas mantiveram-se, ainda que reconfiguradas.
A conversão de Duque de Caxias em área de segurança nacional não ocorreu no abstrato, visto o longo histórico de tensões sociais e as lutas dos trabalhadores urbanos e rurais que ameaçavam os detentores do poder. A luta dos camponeses, nem sempre lembrada, era (e permanece) ainda mais delicada e complexa, visto que os trabalhadores rurais não tinham sido contemplados na legislação trabalhista varguista, e sequer podiam ter organização sindical própria, pois o Estado Novo temia que isso levasse “a luta de classes ao campo, ao mesmo tempo em que se insistia na incapacidade organizativa dos trabalhadores, do que decorria a necessidade de tutela permanente”, conforme Medeiros (2018, p.57), e, por isso, só era legalmente permitido a organização mista, isto é, composta por fazendeiros e trabalhadores.
A Baixada Fluminense, enquanto objeto de pesquisa, tem sido contemplada na área da História, ainda que de forma irregular variando em função das temáticas, dos recortes adotados e tendo pela frente o grande desafio de fazer circular as novas pesquisas sobre a região (NASCIMENTO; BEZERRA, 2019).
Embora venha crescendo pesquisas sobre a Baixada numa perspectiva histórica, a emergência de estudos no campo da História da Educação é recente. Assim, o projeto em tela pretende contribuir para amenizar essa lacuna, tendo como objetivo geral investigar como os temas da educação compareciam nos movimentos sociais entre 1964 e os anos 1990 em Duque de Caxias, focando, em especial, o longo período de lutas em prol da redemocratização. Tal período busca balizar, de um lado, o momento de recrudescimento dos movimentos sociais no contexto de esgarçamento da ditadura civil-militar e, por outro, o lento processo de redemocratização com distintos arranjos políticos e embates em diferentes instâncias. Pretende-se observar, a um só tempo, os marcos regulatórios dos sistemas educacionais e as pautas dos movimentos sociais locais, buscando captar prioridades, ausências e tensões por meio de análise documental, bibliográfica e resgate de memórias de alguns participantes que lutaram pela democratização educacional na Baixada Fluminense, tendo como foco Duque de Caxias.
Tais memórias são fundamentais visto que a Baixada evoca, no senso comum reforçado pela mídia, uma representação negativa lastreada pela miséria e por todos os tipos de violência em detrimento das lutas individuais e coletivas. Esta visão estigmatizada marca, em maior ou menor grau, o processo de construção identitária do morador da Baixada. Um trabalho comprometido com a desconstrução desse olhar estigmatizado não é algo trivial, posto que, se escapa à maioria da população da Baixada o acesso a direitos sociais básicos, também há negação do direito à memória. Assim, a identificação, preservação e análise de acervos documentais de pesquisa em história local integram a metodologia.
Ademais, a história da educação local será analisada na confluência com as demais escalas, com as diretrizes e os debates educacionais que ocorriam em âmbito estadual e federal. Com o intuito de contribuir nessa caminhada já trilhada por outros, o projeto pretende, de um lado, (re)ler fontes legais, mas não de forma subserviente, não se pretende fazer uma mera compilação, pois isso seria apenas reforçar o discurso oficial. Faz-se necessário contextualizar, tecer perguntas ao documento. Ou seja, não se pretende analisar a fonte legal, seja municipal, estadual ou federal, através de um olhar fetichizado, preso ao documento como se este fosse expressão da realidade em si.
Importa notar, contudo, que as fontes escritas não se restringem ao acervo de cunho legal, e sim a qualquer tipo de registro encontrado que possa contribuir com a pesquisa. Além disso, pretende-se recorrer à história oral não só com o fito de ampliar a natureza das fontes, possibilitando um rico entrecruzamento, mas sobretudo privilegiar o olhar de sujeitos individuais e coletivos (MUB, SEPE/DC) comprometidos com os movimentos organizados da sociedade civil popular.
Nessa perspectiva, importa dizer que o conceito de “sociedade civil”, no sentido gramsciano, não pode ser pensado isoladamente, tampouco é um instrumento neutro, sendo uma noção política e componente essencial para se conquistar a hegemonia. Sociedade civil é lugar de dominação, mas também possibilidade de transgressão, de resistência, de organização de uma contra-hegemonia. Assim, certos movimentos organizados pela sociedade civil podem dialogar com o aparato jurídico, com a sociedade política, seja para exigir o cumprimento da lei, para a disputa de interpretações ou mesmo para sua contestação.