Vivemos em uma era de grandes desafios à democracia representativa, em aspectos distintos.
Um desses desafios reside na compreensão dos limites da governabilidade, que se torna, em
muitos momentos, um instrumento indevido de grupos que chegam ao poder. Um exemplo
disso foram os vários episódios ocorridos no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2018-
2022), no qual o ideal de laicidade foi reiteradamente maculado em diversas falas com o
objetivo de arregimentar o apoio de indivíduos e aumentar a aderência aos valores e ideais que
estavam na base daquele governo. Os valores que estavam (e ainda estão) na base do
interdiscurso dos membros do governo (e seus seguidores) são religiosos – cristãos,
provenientes do protestantismo e catolicismo – com clara exclusão de valores e ideologias
discrepantes (como é o caso das religiões de matriz africana, por exemplo, ou da luta pelo direito
de minorias, como no caso das famílias homoafetivas). O fato é que nosso país passou (e ainda
está passando) por inúmeros conflitos sociais de matriz ideológica, em que os direitos das
minorias foram (e ainda estão sendo) questionados por uma parcela significativa da população,
que busca impor seus ideais religiosos e sociais a todos, em claro desrespeito à laicidade e ao
conjunto dos princípios que estão na base do Estado Democrático de Direito, como a liberdade
e a pluralidade. A partir desse conjunto de informações, surgiu o problema a ser investigado
nesta tese: quais foram as implicações de certos atos, dispostos a partir de implícitos e
silenciamentos, em discursos religiosos proferidos por membros do Poder Executivo e
Legislativo entre 2018-2022, e quais suas implicações para o Estado Democrático de Direito?
Nosso objetivo geral foi analisar os discursos religiosos por trás do discurso político nos últimos
anos no Brasil, revelando suas implicações sobre a liberdade e a laicidade, pilares do Estado
Democrático de Direito, a partir da identificação dos implícitos e silenciamentos da Análise de
Discurso e dos pressupostos teóricos da Teoria dos Atos de Fala. A partir desse objetivo,
construímos um conjunto de objetivos específicos, como o estudo das Teorias dos Atos de Fala
(TAF); a compreensão da relação entre poder e discurso a partir dos pressupostos teóricos do
Estado nas teorias de Foucault e de Bobbio; a percepção do contexto histórico ocidental quando
se fala em poder e política; o conceito do Estado Democrático de Direito; a investigação sobre
laicidade e liberdade a partir de dados quantitativos sobre a temática; e, por fim, analisar a
materialidade discursiva a partir de um corpus formado por pronunciamentos dos poderes
Executivo e Legislativo que embaralham política e religião, como a fala da ministra Damares
Alves “é o momento de a igreja ocupar a nação”, apontando suas relações e implicações para a
segurança do Estado Democrático de Direito, tendo, como parâmetro, dois de seus pilares: a
liberdade e laicidade. Diante do quadro conjuntural, que nosso país tem vivido, com grande
polarização política e social, além de diversos conflitos que culminaram em alguns eventos
violentos (como a destruição do STF em 2023 pelos apoiadores do movimento político
encabeçado pelo ex-presidente), este estudo mostra-se necessário, pois precisamos questionar
os limites da governabilidade ética e comprometida com o todo social, assim como a proteção
dos princípios que regem o Estado Democrático de Direito. Como resultado, conseguimos
perceber a existência de atos de fala de vários tipos nas falas do ex-presidente e da ex-ministra
Damares Alves, com incitação ora velada, ora escancarada, à imposição de valores e ideologias
religiosas a todos, em claro descompasso com todos os valores constitucionais que devem ser
a base da nossa sociabilidade.