A tentação de Jesus é um texto milenar que interpela o imaginário de muitos cristãos. A tentação pertenceu, originalmente, a um material conhecido como Fonte Q. Há evidências de que o Evangelho de Lucas é a obra que manteve a forma mais próxima do original. Este estudo adotou como corpus a tentação de Jesus materializada no Evangelho de Mateus (capítulo 4:1-11). Primeiramente, porque a tentação de Jesus em Mateus é pouco discutida, mesmo existindo elementos de acabamento que a tornam diferente da materialização em Lucas. Não menos importante, a tentação em Mateus revela uma polêmica velada que é percebida quando os discursos veiculados pelas personagens Jesus e Diabo são submetidos à análise dialógica da argumentação. À luz desse método analítico desenvolvido por Nascimento (2018), este estudo tem o objetivo de demonstrar como se constituem os posicionamentos das personagens no evento polêmico literário da tentação em Mateus 4:1-11. Assim, procura-se compreender o funcionamento da polêmica, seja ela aberta ou velada. A análise dialógica da argumentação é o encontro epistemológico entre a filosofia bakhtiniana e a Nova Retórica de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca. Quatro hipóteses surgiram desse encontro. A principal hipótese é que a polêmica é um desacordo profundo que se manifesta argumentativamente pela polarização, cujas características particulares se delineiam no processo argumentativo concreto. A segunda hipótese é a de que o evento polêmico é o encontro de posicionamentos, fundantes de dois campos discursivos antagônicos, responsáveis por atualizar entidades de outras polêmicas em um dado cronotopo. A terceira hipótese é a de que os atos polêmicos são as estratégias argumentativas, os posicionamentos e argumentos, através dos quais é possível observar certa memória se atualizar. A quarta e última hipótese é a noção de microato polêmico. Considerando essas hipóteses, em especial a noção de evento polêmico, propomos a noção de evento polêmico literário que pode ser entendido como a simulação de uma polêmica em que discursos são veiculados por personagens representantes de posicionamentos antagônicos em um dado cronotopo. A partir disso, discutimos a possibilidade de uma análise dialógica e argumentativa da tentação como gênero discursivo; buscamos identificar os elementos que evidenciam o funcionamento da memória discursiva (polêmica) na construção de sentido e nas retomadas dessa memória; investigamos como se constituem os posicionamentos nos discursos antagônicos, bem como o cronotopo na tentação. Os resultados apontam para a construção de uma polêmica aberta entre as personagens, mas, principalmente, uma polêmica velada, um embate velado, entre a comunidade de Mateus, cujo discurso é veiculado pela personagem Jesus, e o judaísmo formativo, cujo discurso é veiculado pela personagem Diabo