Sabemos que os documentos manuscritos nos revelam aspectos da língua, cultura, história e memória. Sendo assim, a partir do momento em que o/a filólogo/a tem acesso a tais documentos, é possível tirar do ostracismo histórias que delineiam/representam um povo e/ou um grupo de povos. Na presente tese, tivemos por objetivos editar filologicamente dois crimes de estupro, a saber: um Sumário de estupro, lavrado em 1936, de Santa Bárbara-BA, e um Inquérito Policial de estupro, lavrado em 1941-1942, de Feira de Santana – BA, e a partir dos estudos semântico-cognitivos, buscamos compreender como o estupro e o corpo feminino violentado eram conceptualizados no corpus. É preciso destacar que o desenho metodológico desta tese foi pautado em uma metodologia qualitativa, de cunho descritivo, explicativo e documental. Assim, com vistas a preservar os documentos, cuidadosamente transcrever as histórias respeitando os aspectos intrínsecos e extrínsecos dos documentos, optamos, dentro do campo filológico, realizar a edição semidiplomática no corpus – tomando por base os critérios estabelecidos no NEMa – Núcleo de Estudo do Manuscrito e Queiroz (2007). Ao editar o corpus, foi imprescindível estabelecer diálogos com contextos históricos, com alguns textos literários que tratam de crimes de estupro, como três histórias, a de Diná, da Concubina e Tamar, contidas na Bíblia (2014), e o conto Quantos filhos Natalina tem? de Evaristo (2019), e dados dos nossos dias atuais - o caso de estupro de Mariana Ferrer. Essas aproximações foram possíveis por, principalmente, adotarmos a concepção de texto trazida por McKenzie (2005) - texto como marcado pela história, pelo autor e, também, aberto, interdisciplinar. Desse modo, as vítimas encontradas no corpus eram vistas como pessoas sem prestígio social (eram pobres, a julgar pelas declarações contidas no corpus) e a situação delas se agravava após o crime, pois eram consideradas sem honra, ou seja, eram revitimizadas pela sociedade. Assim, através das discussões trazidas por Lose et al (2018), Souza (2014), Sacramento; Santos (2017), Warren (2003) e Ximenes (2020), foi possível compreender que este estudo filológico é ato político, visionário, empoderador e, que também, tem por objetivo diminuir as vulnerabilidades da mulher. Nesse caminhar, os aspectos históricos, sociais e culturais, presentes nos crimes de estupro, foram tecidos por meio da leitura de alguns historiadores, tais como, Del Priore (2011), Vigarello (1998), Perrot (2003, 2018) só para citar alguns. O corpo feminino a todo tempo é pontuado como objeto, posse, o que representa, nesse contexto, o caráter opressor e hegemônico do poder masculino nas relações sociais; a subalternidade feminina com base na hierarquia de gênero e a invisibilização das violências contra a mulher. Para tratar das conceptualizações compreendidas para o estupro e o corpo feminino violentado foi preciso tratar da Teoria da Metáfora e Metonímia, bem como a Teoria dos Modelos Cognitivos Idealizados, a Teoria dos Esquemas de Imagem, Semântica de Frames. Em seguida, catalogamos e analisamos as expressões metafóricas e metonímicas com o objetivo de elucidar as conceptualizações sobre o corpo feminino violentado. Para o aporte teórico no campo da Linguística Cognitiva, utilizamos os postulados de Lakoff e Johnson (1980; 1999), além de Feltes (2007), Ferrari (2011), Fillmore (1982), Almeida (2021, 2020, 2018, 2016). E para análise do corpus adotamos os modelos, com adaptações, de Araújo (2021), Moreira (2015) e Santana (2019), com adaptações. Deste modo, estruturamos primeiramente as conceptualizações dos crimes sexuais, que estavam correlacionadas a oito domínios, foram eles: domínio JUSTIÇA, domínio MORALIDADE, domínio VIOLÊNCIA, domínio POSSE, domínio FLORA, domínio SEXO, domínio GUERRA e domínio PUREZA. Dentro dos domínios, procuramos explicitar a estruturação conceptual, através dos esquemas imagéticos, trazendo os contextos extraídos do corpus e as análises que foram realizadas sobre as metáforas e metonímias identificadas. Em seguida, organizamos uma seção sobre os corpos femininos na violência sexual, na qual duas metáforas foram salutares para as análises, são elas: O CORPO DA VÍTIMA É RECIPIENTE e O CORPO DA VÍTIMA É OBJETO.